Coração desperto
Marco Antonio Spinelli*
Einstein uma vez foi
questionado sobre qual seria a sua pergunta mais importante. A sua resposta
foi, como sempre, desconcertante: “O Universo é amigável?”. Parece uma pergunta
boba, mas sua implicação é profunda até para o trabalho de um psiquiatra. A
resposta que a Ciência diria é que o Universo não é hostil nem amigável, é uma
somatória de leis imparciais e sem intenção, que selecionam os mais aptos e
eliminam os mais fracos. É um universo regido por probabilidades sem
consciência, sem proteção. Quando Einstein levanta a possibilidade de um
Universo amigável, está questionando a existência ou não de uma ordem profunda,
que ajuda a nossa evolução, como uma Mão Invisível, um anjo da guarda, uma
Ordem Superior. Se alguém pensou em Deus, está na direção da pergunta do físico
alemão.
O que eu diria para
Einstein é que a expectativa de um Universo amigável ou devorador vai gerar
muito da nossa experiência nele. Nossa expectativa é marcada por experiências
que nos são transmitidas, pelos pais, pela família, pela cultura, pelos eventos
que marcam e determinam nossa visão do mundo. No momento em que estou
escrevendo esse texto, chega uma notícia no celular de um homem que abriu fogo
contra pessoas num supermercado americano, na cidade de Bufallo, New York. Mais
um “mass shooter”, um atirador em massa, explodindo seu ódio contra pessoas
indefesas e desconhecidas. Ele se descreveu como um “supremacista branco”. Para
o atirador e as vítimas e seus familiares vai ser difícil falar de um Universo
amigável, ou protetor. O atirador em massa é geralmente uma pessoa isolada, com
pouco ou nenhuma estrutura familiar ou inserção social, que se filia a grupos
de ódio e explode seu isolamento atirando em inimigos imaginários. Viver ou não
no Inferno depende de como alguém se relaciona consigo e com o Outro. Tem mais
gente vivendo na selva do ódio que na proteção do afeto.
Há uma história bonita
que eu ouvi numa meditação de Tara Brach, maravilhosa terapeuta e mestra
budista (para quem entender o Inglês, há achados preciosos dela no Youtube),
que eu vou resumir aqui: “Em tempos muito antigos, havia um mosteiro budista
que tinha sido outrora muito próspero, mas que agora experimentava uma profunda
decadência. Os monges e as monjas não conseguiam mais cuidar dos outros, e isso
se refletia numa horta em que as plantas iam muito mal, morriam e não pareciam
ter salvação. Os líderes estavam ficando muito velhos e não tinham força para
mudar o ambiente corporativo do Mosteiro.
Um abade, preocupado
com a situação, foi falar com uma senhora, uma Velha Sábia conhecida em toda a
região por sua sabedoria e conhecimento. Como acontece em muitas situações de
aflição, o monge queria uma espécie de tutorial com estratégias para melhorar o
ambiente de trabalho e salvar o Mosteiro. A sábia em questão, sendo sábia, não
deu a ele nenhuma fórmula pronta. Apenas respondeu que não sabia como ajudar os
monges e monjas naquela situação, mas que sabia que naquele lugar havia um Bodhisattva.
Bodhisattva é um ser iluminado e
desperto, o que significa que tem um Coração Desperto, capaz de promover e
estimular a iluminação dos seres. O abade voltou ao Mosteiro e dividiu com os
monges o que disse a Velha Sábia. Nos dias que se seguiram começou a acontecer
mudanças profundas nas pessoas, que passaram a se tratar com respeito e
reverência, imaginando que a pessoa na sua frente poderia ser o Ser Iluminado.
O Mosteiro voltou a prosperar, as plantas e as pessoas foram cuidadas e a
comunidade beneficiada. Essa Sábia poderia muito bem responder para o Einstein
que não sabia se o Universo é ou não amigável, mas que havia um Bodhisattva dentro dele.
E que ele pode ter o Coração Desperto que muda o mundo.
Podemos ver nas pessoas
o que elas possuem de pior, podemos pensar no ser humano a partir da estupidez,
da ignorância ou da loucura que faz um cidadão disparar contra pessoas
indefesas no supermercado. Ou podemos ter a esperança em despertar a natureza
profunda das pessoas, que é de Bondade Amorosa.
A mágica dessa parábola
é que, quando tratamos as pessoas como se elas fossem esse Ser Iluminado, tudo
cresce e a vida volta a prosperar. Quando tratamos o Outro como lixo, ele pode
abrir fogo entre as gôndolas do supermercado.
**Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiano e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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