O futuro já não dura tanto tempo
Por André Dória, Coordenador do Programa de Transtorno Bipolar da Holiste Psiquiatria
A situação vivida por
uma mulher que, em franco surto psicótico, foi encontrada por seu companheiro
mantendo relações sexuais com um homem que vive em situação de rua, dentro de
um carro, espalhou-se pelas redes sociais. Após se recuperar da crise,
deu entrevistas em que dizia ter visto o rosto de seu marido, e de Deus, no
morador de rua.
Há mais de 20 anos lidando
com pessoas em sofrimento psíquico, algumas das quais em crises tão graves
quanto a deste caso, noto que persistem os preconceitos e estigmas relacionados
ao assunto. Igualmente perturbadora é a descoberta de que, quando se trata da
chamada sanidade mental, a fronteira que separa o normal do patológico pode ser
tão frágil quanto os argumentos de milhões de juízes dos tribunais virtuais,
aos quais essa mulher, aliás ambos, foram submetidos. O “mendigo pegador” –
como ficou conhecido o homem – virou mais uma dessas celebridades semanais. Sua
falta de censura ao narrar o episódio coloca em questão se o transtorno mental
estaria somente do lado da mulher.
Essa história atualiza
duas referências fundamentais para os que estudam, trabalham ou se interessam
pela Saúde Mental. A primeira é a crítica do psicanalista Jacques-Alain Miller,
defendida em seu trabalho Saúde
Mental e Ordem Pública, no qual aponta que o critério mais evidente
da perda da saúde mental é justamente a perturbação da ordem pública. A segunda
pelo o que é dito, mas também pelo não dito, aquilo que é esquecido ou
silenciado: pela escuta. Por vezes, uma crise pode se tornar a forma mais
dramática de irromper no real algo que não pôde ser dito e elaborado na
realidade psíquica.
A segunda referência
diz respeito ao filósofo Louis Althusser, cujo histórico de vida foi marcado
por diversas crises entre 1947 e 1980. Na manhã de um domingo de 1980, em uma
nova crise, assassinou por estrangulamento sua companheira de mais de trinta
anos. Sentenciado à impronuncia, não teve direito à defesa ou a qualquer
manifestação pública sobre o crime, e retirou-se da vida laborativa,
intelectual e produtiva. Como forma de amenizar, nas suas palavras, a “pedra
sepulcral do silêncio” ao qual foi submetido, escreveu O Futuro Dura Muito Tempo,
não para eximir-se das responsabilidades pelo assassinato, mas para responder
pelo seu ato e tentar lançar luz sobre uma pergunta que o atormentava: “como é
possível que eu tenha matado Heléne?”.
Hoje, a condenação não é mais ao silêncio, mas à superexposição das imagens e das falas dos atores que embalam um mercado consumidor do produto que histórias dessa natureza se tornam. Além disso, o tempo dos tribunais virtuais pulverizou a distância entre a ocorrência de um fato, sua apreensão, análise e conclusão. A condenação dessa mulher (aliás, de ambos) praticamente simultânea aos fatos, é um signo desse estado de coisas onde o passado, presente e futuro se misturam. No caso dela, só após seu restabelecimento psíquico o seu testemunho pôde ser ouvido, conduzindo-a involuntariamente ao retorno dos fatos traumáticos e denunciando a convulsão dos tempos atuais, onde o futuro já nasce como passado.
Nenhum comentário