O fim da esfera pública como conhecemos
*Por Gabriel Rossi
Durante o Black Lives
Matter, no ano de 2020, a polícia de Dallas criou um aplicativo para que as
pessoas denunciassem os manifestantes que protestavam nas ruas da cidade
texana. Sabendo disso, em uma clara manifestação política e militante, fãs de
K-POP, incentivados pelo conjunto BTS, lotaram o dispositivo com vídeos dos
seus astros favoritos, tornando inviável sua execução e fazendo com que a
iniciativa fosse cancelada pelas autoridades locais.
Quem poderia imaginar
que entusiastas da cultura pop coreana pudessem tencionar o que um dia foi
performado exclusivamente por burgueses em salões e cafés dos séculos
anteriores? Esse fenômeno, típico da contemporaneidade, mostra que os quadros
de compreensão do mundo não estão mais dispostos pelo tom de formalidade
argumentativa; sem o protagonismo da comunicação marcada pela oralidade, a
experiência pública e coletiva carrega um engajamento político mais
ritualístico, efêmero. Há uma concepção estética, performática e, até mesmo,
articulada ao redor da diversão.
Nunca, na história da
humanidade, houve tanta abundância comunicativa, e os palcos discursivos são
hiperbolizados, multidões têm acesso a dados, documentos, discussões. Com seus
incontáveis fóruns de debate sobre uma vasta gama de temas, a internet parece levar
a uma fragmentação do público e uma “liquefação da política”. Esqueça a esfera
pública normativa, racional, habermasiana, motivada pelo intercâmbio
argumentativo. A forma que a sociedade tenta convergir sobre um determinado
assunto é, em tempos hodiernos, multifacetada, fragmentada e, muitas vezes,
idiossincrática. Nas fronteiras das redes sociais e à luz da vida pós-moderna,
é cada vez mais difícil cristalizar a opinião pública. Há objetivos, ideários,
narrativas, sentimentos diversos. A comunicação no ambiente público é hoje
muito mais difusa, o público passa a ser uma forma fluida de associação
coletiva.
Dispositivos
tecnológicos permitem mobilizações pragmáticas. Estando em rede, a paixão por
K-POP e o apego às causas como aquelas defendidas pelo Black Lives Matter
constroem os fundamentos necessários para uma lógica de militância ser colocada
em prática no ecossistema digital, uma lógica, sim, efêmera. Sem muito espaço
para a racionalidade crítica de outrora, mas ainda assim, às vezes, efetiva.
Gabriel
Rossi é sociólogo e profissional de marketing, pesquisador e professor da ESPM
e da USP-ESALQ
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