O "preste atenção" dito pelas urnas
Samuel Hanan**
O resultado da eleição para Presidência da República não deixa nenhuma dúvida
de que os maus políticos e os maus governantes dividiram o País. O candidato
eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, recebeu 60,346 milhões de votos (50,90% dos
votos válidos), enquanto Jair Bolsonaro obteve 58,206 milhões de votos (49,10%
dos votos válidos). A menor diferença da história, escancarando a divisão do
país.
A abstenção também foi menor nesse pleito (32,20 milhões de eleitores num
universo de 156,45 milhões de cidadãos aptos a votar), assim como o número de
votos brancos e nulos, que somaram 4,59%. Ou seja, 124,25 milhões de
brasileiros cumpriram seu dever cívico e exerceram o direito de, democraticamente,
eleger o presidente. E o fizeram de forma pacífica e ordeira, em contraste com
a animosidade e o desrespeito demonstrados na campanha por muitos dos
concorrentes, inclusive os postulantes ao cargo de Chefe da Nação.
Se está clara a divisão do país, esse fenômeno não pode ser entendido meramente
como fruto de polarização entre direita e esquerda. É muito mais do que isso.
Resulta, sobretudo, das enormes desigualdades regionais e sociais que tornaram
o Brasil uma nação torta, desequilibrada e injusta, condição acentuada após a
Constituição Federal de 1988.
Basta ver que o Nordeste, que responde por 18,16% do território nacional e
29,64% da população brasileira, participa com apenas 14,38% do Produto Interno
Bruto (PIB) nacional, enquanto, por outro lado, o estado de São Paulo, ocupando
apenas 2,92% do território nacional concentra 21,16% da população nacional e
detém participação de 31,56% no PIB. A confirmação vem com a análise regional:
Norte e Nordeste, somados, têm 38,14% da população e respondem por 63,81% do
território brasileiro, mas participam com apenas 19,85% do PIB.
O resultado das urnas pode ser interpretado como uma espécie de “preste
atenção”. Um grito nacional dos eleitores dizendo que todos brasileiros desejam
ser cidadãos de classe única e não mais brasileiros de segunda ou terceira
classe, assim definidos pelo local de nascimento ou de moradia.
Esse grito de liberdade veio sobremaneira do cinturão mais empobrecido do país.
A eleição foi decidida com votos da Bahia, subindo por todo o litoral do
Nordeste e abrangendo também o Pará.
Foi também um grito de tolerância. A população - em decisão legítima e que deve
ser respeitada - deu nova oportunidade a um candidato que jamais conseguiu dar
resposta convincente aos escândalos de corrupção em seu governo e que se
beneficiou da condição de “descondenado”. Essa tolerância se estendeu aos
resultados de suas gestões, nas quais não reduziu as desigualdades regionais
nem produziu melhores resultados de desenvolvimento humano. Ao assumir o
primeiro mandato, em 2003, o agora eleito assumiu o Brasil na 72ª posição em
IDH e ao passar a faixa presidencial, oito anos depois, o país havia caído para
a 88ª posição. No Coeficiente de Gini, que mede a concentração de renda nos
países, praticamente não houve melhora: o Brasil passou da 6º para a 7ª pior
posição entre 129 países. No IRBES (Índice de Retorno de Bem Estar à
Sociedade), o país permaneceu estável na 30ª e última posição enquanto o
desempenho brasileiro no PISA (Programa Internacional de Avaliação de
Estudantes) também não melhorou. É preciso efetivamente entregar. É preciso
mais compromisso do que promessas e palavras soltas, por mais bonitas que se
apresentem.
A despeito de tudo isso, nova oportunidade foi dada nessa eleição. É possível,
agora, responder assertivamente a esse grito de liberdade vindo das urnas,
corrigindo tamanhas injustiças que castigam os brasileiros? A resposta é
“sim!”. É possível e nem requer malabarismos administrativos. Basta cumprir a
Constituição e conseguir que o Congresso altere, no máximo, três ou cinco
artigos da Carga Magna.
Dentre as alterações necessárias está o fim da reeleição para cargos
executivos, aumentando de 4 para 5 anos os mandatos de prefeito, governador e
presidente da República. É também urgente alterar o foro especial por
prerrogativa de função, restringindo tal instituto apenas aos chefes dos Três
Poderes, a fim de reduzir a impunidade entre os ocupantes de cargos públicos praticantes
de malfeitos. Da mesma forma, o país reclama mudança legislativa para permitir
o afastamento do cargo e a prisão de mandatários condenados em primeira
instância e com sentença confirmada por tribunal pleno de segunda instância
judicial. Além disso, é fundamental aditar a obrigatoriedade constitucional
para que os candidatos a prefeito, governador e presidente apresentem
formalmente, durante a campanha eleitoral, seus planos de metas com
detalhamento das principais ações de governo, incluindo custo e origem dos
recursos, que serão avaliados e auditados anualmente pelo Poder Legislativo e
órgãos de controle externo, além de disponibilizados para a mídia e para
a sociedade civil.
No mais, basta cumprir efetivamente o que dispõe a Constituição, em especial
nos artigos 3º (caput e inciso III), 5º, 43, 151 (caput e inciso I), e 165
(caput e parágrafos 6º e 7º) para a correção das desigualdades regionais e
sociais. Para isso, é necessário rever com urgência os gastos tributários da
União que hoje consomem cerca de 4,5% do PIB, ou R$ 427 bilhões/ano. A
limitação desses gastos em 1,5% ou 2% do PIB resultaria em mais R$ 237 a R$ 287
bilhões/ano para investimento nas regiões Norte e Nordeste. Haveria equilíbrio
na balança: hoje, cerca de 66% dos gastos tributários são destinados a
beneficiários das regiões mais desenvolvidas do país, Sudeste (50%) e Sul
(16%), exatamente o contrário do disposto na CF/88. E o cumprimento dos
parágrafos 6º e 7º do artigo 165 da Constituição garantiria, por si só, investimentos
orçamentários para as regiões mais necessitadas. O Supremo Tribunal Federal
(STF) também poderia dar sua contribuição na união do país simplesmente se
atendo ao disposto no texto constitucional, e adotando menos decisões
monocráticas, privilegiando as decisões do Pleno da Corte. Seus integrantes
também poderiam reduzir a exposição do tribunal, manifestando-se mais nos autos
do que na mídia.
Para mitigar o desequilíbrio vigente, é indispensável ainda fechar a fábrica de
pobreza, que pune os cidadãos das classes C, D e E com a absurda e inaceitável
tributação sobre o consumo, responsável por encarecer os gêneros de primeira
necessidade. É óbvio, também, que uma reforma fiscal ampla – inadiável –
compensará a redução da tributação sobre consumo, com aumento da necessária
tributação sobre renda e capital.
O recado das urnas foi dado. Cabe agora ao eleito, dar ouvido ao que foi dito
pelo povo – via voto – para tornar o Brasil um país menos injusto. Será o
primeiro e decisivo passo para a reunificação da nação. Para isso, nada melhor
que a plena cidadania seja acessível aos brasileiros de Norte a Sul.
**Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br
Nenhum comentário