Assédio judicial por demandas opressivas e judicialização predatória
*Por José Miguel Garcia Medina
O assédio judicial realizado por
demandas opressivas é problema que, em tempos recentes, vem chamando a atenção
da jurisprudência. E, há poucos dias, o tema foi objeto de deliberação do
Conselho Nacional de Justiça, que, de forma contundente, manifestou-se contra a
judicialização predatória.
O fenômeno pode ocorrer quando uma mesma
pessoa litiga contra outra repetidamente e também quando várias ações são
movidas por demandantes diferentes, de modo orquestrado, contra uma mesma
pessoa. O ajuizamento de ações repetitivas e manifestamente infundadas pode
revelar a existência de falsos litígios, em que vários e sucessivos processos
judiciais são utilizados com o propósito de assediar alguém processual e
judicialmente.
A litigiosidade falsa é estudada há
algum tempo no âmbito do Direito Concorrencial. Nesse caso, usa-se o
termo sham litigation para
se referir ao litígio simulado, manifestado com o uso abusivo do direito de
petição (não apenas através de ações judiciais, mas também em manifestações
perante outros órgãos públicos), de modo repetitivo (litígio padrão, pattern litigation), por um
agente, com o propósito de prejudicar seu concorrente.
No contexto brasileiro, a figura
da sham litigation já
foi considerada também em outras áreas e, para tratar do exercício abusivo do
direito de ação, entre litigantes individuais.
Em julgado expressivo, de relatoria da
ministra Nancy Andrighi, chamou-se a atenção para a necessidade de se conter o
exercício abusivo do direito de ação, "em
ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas
a tornar o processo um simulacro de processo ao nobre albergue do direito
fundamental de acesso à Justiça".
O tema vem sendo estudado também sob a
perspectiva constitucional, já que o assédio processual pode ser empregado com
o propósito de impedir o exercício de direitos fundamentais, como a liberdade
de expressão ou o livre exercício profissional, em que se analisa o uso
estratégico de processos judiciais com o propósito de intimidar manifestações
públicas (opiniões, críticas e quaisquer manifestações de pensamento), figura
conhecida, no Direito norte-americano, como "strategic lawsuits against public participation".
Nesse caso, o direito de ação é deturpado e manipulado de modo abusivo, pois é
indevidamente exercido para dissimular uma prática de perseguir insistentemente
uma pessoa com o propósito de intimidá-la, impedir suas manifestações públicas,
levá-la ao esgotamento, subjugá-la, retirá-la do espaço público ou, no limite,
até mesmo destruí-la. Trata-se do "efeito resfriador" (chilling effect).
O contexto brasileiro é propício a essa
prática. País de dimensões continentais em que o direito de ação é
exercido sem grandes obstáculos, pode-se facilmente engendrar o ajuizamento de
múltiplas demandas contra uma mesma pessoa, em variados locais do território
nacional.
Essa prática, manifestamente abusiva,
deve ser evitada e repreendida pelo Poder Judiciário. Atento ao problema, o
Conselho Nacional de Justiça, no último dia 8, aprovou "recomendação para que os tribunais
adotem cautelas visando a coibir a judicialização predatória com os objetivos
de promover o cerceamento de defesa e a limitação da liberdade de
expressão".
Há projeto de lei em trâmite na Câmara
dos Deputados que "estabelece
regras para reunião de ações judiciais em face de demandas opressivas" (PL
90/2021). Trata-se de iniciativa importante. Entendemos, de todo modo, que
a recomendação do Conselho Nacional de Justiça pode ser observada aplicando-se
as regras processuais hoje em vigor, a fim de viabilizar a reunião de ações
abusivas para julgamento conjunto, punindo-se seus autores.
O uso de ações judiciais de modo
estratégico, como se percebe, é uma variação (ou o uso ampliado) dos litígios
falsos. Diante disso, e à luz do que vimos expondo, consideramos conveniente
distinguir essas duas hipóteses, ambas merecedoras de atenção.
A primeira, que talvez deva ser mais
comum, é verificável quando houver processos judiciais repetitivos entre os mesmos
litigantes, hipótese em que a solução para a reprimenda do abuso é facilmente
identificável à luz do Direito Processual.
Pode, no entanto, suceder que as ações
judiciais sejam manejadas por diversos indivíduos em diferentes lugares e
instâncias, de modo a dificultar a defesa de uma pessoa. Pense-se, por exemplo,
em ações ajuizadas perante os Juizados Especiais Cíveis e a Justiça comum, em
comarcas diferentes de vários estados do Brasil, contra um mesmo jornalista, ou
um advogado, ou o autor de um livro.
Vê-se que, embora surgidas em contextos
diferentes, as doutrinas sobre sham
litigation e strategic
lawsuits against public participation podem se apresentar
concomitantemente. Em tais situações, e se manifesta a falsa litigância (isso
é, o uso artificial do processo), através do assédio judicial, com o propósito
de intimidar a pessoa, cumprirá ao Poder Judiciário amoldar institutos
concebidos para solucionar dilemas próprios de lides clássicas, ajustando-os de
modo a evitar o exercício abusivo do direito de ação e a impedir que o próprio
Poder Judiciário seja usado para fins contrários ao direito.
Por exemplo, havendo evidências de que
muitas ações estão sendo ajuizadas concomitantemente e por várias pessoas
apenas com propósito intimidatório, ainda que sob a coordenação de alguém que
não se apresenta formalmente no processo, é de todo conveniente que essas ações
sejam reunidas para julgamento conjunto. Trata-se de solução que deve ser
observada, ainda que não se verifique, no caso, absoluta identidade entre
pedido ou causa de pedir de tais ações. Recorde-se que a possibilidade de
reunião de causas para julgamento conjunto, no contexto brasileiro, não se
restringe à hipótese em que se configura a conexão stricto sensu. O §3º do
artigo 55 do CPC dispõe que "serão
reunidos para julgamento conjunto os processos que possam gerar risco de
prolação de decisões conflitantes ou contraditórias caso decididos
separadamente, mesmo sem conexão entre eles". Essa regra pode
ser aplicada, por analogia, aos casos em que se observa o assédio judicial
através do ajuizamento de múltiplas demandas que tramitem em juízos diferentes.
Em casos como os exemplificados, faltará
aos demandantes interesse processual porque revelado que eles não pretendem uma
autêntica tutela jurisdicional contra o réu, mas esperam obter, com o
ajuizamento das ações, tão somente o efeito de silenciar as manifestações
públicas do réu (chilling
effect). Essa prática, que pode ser qualificada como forma de
assédio judicial (ou processual) não corresponde a um interesse processual
legítimo a ser merecedor de tutela pelo Poder Judiciário.
Uma vez demonstrado que essas ações
judiciais são estrategicamente movidas com o propósito de intimidar alguém em
razão de atividade profissional, sua opinião ou manifestação pública, tais
demandas devem ser prontamente rechaçadas, por falta de interesse processual
(artigo 485, caput,
VI, do CPC), aplicando-se aos litigantes o disposto no artigo 80, III do Código
("Artigo 80 — Considera-se litigante de má-fé
aquele que: (...) III — usar
do processo para conseguir objetivo ilegal").
Em alguns casos, pode-se estar até mesmo
diante de feitos controlados ou financiados por sujeitos ocultos (ou não
aparentes), mas mesmo estes, ainda que participem indiretamente do processo
(isso é, não estejam nele presentes formalmente), também têm deveres de atuação
em conformidade com a boa-fé (artigo 5º do CPC) e de comportar-se com probidade
(artigo 77 do CPC), deveres estes que dizem respeito a todos aqueles que de
qualquer forma participem do processo.
Vê-se, assim, que a lei processual em
vigor contém disposições que, adequadamente interpretadas e aplicadas, podem
inibir o assédio processual através de demandas opressivas, evitando que,
através da judicialização predatória, o Poder Judiciário seja usado e
manipulado para servir a vis propósitos.
*José Miguel Garcia Medina é Mestre e Doutor em direito pela PUCSP e sócio fundador do Medina Guimaarães Advogados. Professor titular no curso de direito da Universidade Paranaense e professor associado no curso de direito da UEM. Autor de vários livros e artigos, foi um dos contemplados com o Prêmio Jabuti na categoria “Direito”, com a obra Execução (2.º lugar, em 2009), e finalista do mesmo prêmio com outras de suas obras.
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