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Evergrande, ponta de iceberg ou marola?

 Estevão Seccatto Rocha*

A principal atividade da Evergrande é até simples: comprar terrenos de entidades públicas (governos), incorporar e vender unidades residenciais na planta e durante o período de obras. Atualmente a empresa possui 773 projetos em 223 cidades chinesas, carregando US$ 360 bilhões de dívidas, a maior parte com vencimento em até 12 meses (sendo apenas US$20 bilhões com credores fora da China), incluindo bancos e fornecedores. Assim como no Brasil, caso não haja acordo extra judicial, e os pedidos de falência sejam aceitos pela corte chinesa, a empresa terá de seis a nove meses para estruturar a aprovação de um plano de recuperação judicial junto aos seus credores.

O caminho mais provável é que a empresa venda ativos não operacionais para cobrir parte do endividamento (possui banco, empresas fabricantes de veículos elétricos, farmacêutica, engarrafadoras de água, parques temáticos, além de áreas ainda não exploradas), bem como transfira os projetos em andamento para outros incorporadores (provavelmente regionais), que, finalizando as obras, entregariam as unidades aos compradores finais (o suporte do governo chines será mandatório para minimizar o impacto social), utilizando a sobra de caixa, se houver, para saldar mais dívidas.

A Evergrande vem apresentando sinais de crise há mais de 3 anos. Assusta o fato de somente nos últimos meses as agências de classificação de rating (Fitch, Mood’s e S&P) reduzirem a nota de risco da empresa. Parece uma corrida para consertar um erro que não foi percebido antes, ou foi percebido e não reportado, por algum motivo. Não cabe aqui a análise de qual acionista ou credor trocou ou não de posição, baseado nas análises públicas de rating (reforço sempre a importância da diligencia na tomada de decisão de investimento, uma vez que, como se vê, claramente tais agencias não classificaram corretamente esta empresa).

Desde fevereiro de 2021, a Evergrande tem tentado aprovar um plano de reestruturação junto ao governo chines, que, apesar de depender das incorporadoras como fonte de recursos (venda de terrenos), mostra-se disposto a ajudar os cidadãos, mas pouco propenso a salvar empresas (neste caso, credores). O setor de construção chinês é extremamente alavancado, sendo que de acordo com a S&P, aproximadamente 60% das empresas chinesas não possui caixa para pagar suas dívidas de curto prazo. O que isso quer dizer? Isoladamente, nada.

Ter estoque de caixa para pagar toda a dívida de curto prazo não é praxe, é raridade. Aliás essa é a situação da maioria absoluta das empresas brasileiras, por exemplo, que não possui caixa para suportar 2 meses de operação. Tivemos ciência mais nítida disso durante a pandemia do Covid-19. Ocorre que tais empresas utilizam a geração de caixa de curto prazo para pagar suas obrigações operacionais e financeiras. O problema passa a existir quando a geração operacional de caixa se torna inferior às obrigações financeiras, que é o caso da Evergrande. Esse problema se agrava se as fontes de receita secarem.

Novamente, mantendo o paralelo com a pandemia recente (portas fechadas nos comércios e indústrias), caso os compradores parem de pagar as parcelas das obras, a empresa entrará numa espiral negativa de difícil reversão, o que se agrava com a falta de novos financiadores dispostos a rolar as dívidas atuais. Faz-se, portanto, necessária uma ação conjunta entre empresa, credores e governo, para minimizar os impactos da falta de liquidez.

Quando comparamos, por exemplo, o caso da Evergrande com o a crise do subprime americano, notamos que, enquanto o subprime americano foi causado pelas altas alavancagens das famílias americanas, lastreadas em ativos superavaliados e incapacidade de pagamento, sendo um problema sistêmico, envolvendo diversas instituições financeiras, fundos e seguradoras, que tinham recebíveis quirografários como colateral (diferença entre o valor da dívida e o valor real de mercado dos imóveis), o caso Evergrande aparece restrito à empresa, com magnitude menor e com ativos reais lastreando as operações (as famílias chinesas continuam consumindo, e pagando suas prestações). O ponto de atenção é que diversas outras incorporadoras chinesas estão apresentando problemas semelhantes, como a China Fortune Land Development. De acordo com o banco de investimentos chinês Tianfeng Securities, 14 das 50 maiores incorporadoras chinesas apresentam problemas de liquidez. Esse sim é um sinal de alerta.

Como menciono em minhas aulas e colunas, se existem sinais claros de que um problema está por vir, nada justifica a morosidade na tomada de decisão. A desaceleração do setor de construção chinês traria como impacto a redução do consumo de minérios, sendo o Brasil afetado pela redução das exportações. Por outro lado, a redução da pressão de custos dos insumos para uso local, que tem causado aumento de inflação, e consequente aumento das taxas de juros poderia ser considerada um ponto positivo dessa possível crise imobiliária chinesa? Como isso impacta o seu negócio e sua cadeia de produção? E o agronegócio, outro grande setor de exportação para a China, seria afetado? Os chineses irão reduzir seu consumo de alimentos? Grandes investidores internacionais ficariam receosos com investimentos imobiliários em países emergentes, ou o Brasil seria uma opção de diversificação, dadas as características de déficit habitacional local? Em que ponta da cadeia você está? Reflita, faça suas ponderações sobre sua realidade específica, e tome suas decisões.

 

*Estevão Seccatto Rocha é professor de Turnaround na FIA Business School. Engenheiro naval (Poli/USP), extensão em economia (Harvard), finanças e marketing (FEA/USP), tecnologia (Singularty University), mestrando (University of Liverpool). Foi head global de M&A da Atento (NYSE), reestruturador de empresas pela KPMG e IVIX , diretor da G4S (LSE) e associado no private equity Artesia. Assessorou mais de uma centena de empresas. www.turnaroundtalks.com

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