Incorporadoras Imobiliárias: STJ decide se cabe a recuperação judicial
Por Bruno Costa, Renata Oliveira, Anna Carolina
Simões Abrantes, Caio Aranha Saffaro Vieira, Carolina Mascarenhas, Gabriela
Caetano Andrade e Guilherme Alcântara Nunes*
A recuperação judicial
do incorporador imobiliário é objeto de intenso debate nos tribunais. A crise
econômico-financeira do incorporador já provocava discussões antes mesmo do
advento da Lei nº 11.101/2005 – que regula a recuperação judicial, a
recuperação extrajudicial e falência –, quando a quebra da Encol trouxe
reflexões que impulsionaram relevantes inovações legislativas, tal como a criação
do patrimônio de afetação pela Lei nº 10.931/2004.
Sobretudo a partir da
grave crise econômica que atingiu o setor imobiliário brasileiro em 2014,
diversas incorporadoras vêm recorrendo à recuperação judicial para a
reestruturação de suas dívidas, suscitando dúvidas sobre como as figuras
típicas da atividade incorporadora dialogam com o regime de recuperação
estabelecido na Lei nº 11.101/2005, diante das lacunas legislativas sobre o
tema.
Recentemente o Superior
Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu premissas importantes sobre a matéria em
julgado sob a relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, tendo por objeto
recursos originários da recuperação judicial do Grupo Esser – REsp nºs.
1.969.829/SP, 1.955.428/SP, 1.973.180/SP e 1.975.082/SP. Em julgamento unânime,
a Terceira Turma do STJ manteve acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo
(TJSP), impedindo o processamento da recuperação judicial de todas as empresas
do grupo em litisconsórcio ativo sem a análise das peculiaridades de cada
empresa.
Para compreender os
contornos do julgado, previamente traçamos um panorama sobre como se organiza a
atividade de incorporação imobiliária sob o ponto de vista jurídico, para, na
sequência, fazer o paralelo com o instituto da recuperação judicial.
Estrutura jurídica da
atividade de incorporação imobiliária
Em linhas gerais, a Lei
nº 4.591/1964 (Lei das Incorporações Imobiliárias) define a incorporação
imobiliária como a “atividade exercida com o intuito de promover e realizar a
construção, para alienação total ou parcial, de edificações compostas de
unidades autônomas”. A atividade do incorporador compreende desde a mobilização
dos fatores de produção até a efetiva venda das unidades individualizadas em
edificações a serem construídas ou em construção.
A Lei das Incorporações
Imobiliárias também conceitua a figura do incorporador, dispondo que é “a
pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a
construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno
objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas em edificações a
serem construídas ou em construção sob regime condominial”. Na prática, são
raros os casos em que a incorporação é realizada por pessoa física, sendo
largamente utilizada a estruturação por meio da instituição de um grupo
empresarial, no qual uma pessoa jurídica é a holding
de diversas Sociedades de Propósito Específico (SPEs).
As SPEs são pessoas
jurídicas constituídas com um propósito devidamente especificado nos termos do
seu objeto social. No caso dos grupos econômicos voltados à realização da
atividade de incorporação imobiliária, cada SPE a priori será destinada à realização e à
conclusão de um empreendimento, conforme detalhado em seu contrato social. Com
a devida conclusão, representada pela entrega das unidades autônomas, a SPE
será descontinuada, posto que atingiu seu propósito.
O regime do patrimônio
de afetação
Nesse contexto, a
atividade de incorporação imobiliária envolve alienação de unidades autônomas
em edifícios a serem construídos ou em construção. A aquisição dessas unidades
possui, portanto, um risco inerente, uma vez que que o objeto se caracteriza
por ser coisa futura a ser paga usualmente em parcelas pelo adquirente.
Ressalte-se que a
legislação permite o distrato por parte do adquirente, algo que não era uma
prática antes da promulgação da Lei nº 13.786/2018. Anteriormente à regulação
do distrato em lei, os tribunais tratavam o instituto de forma diversa e com
uma visão muito focada nos interesses dos consumidores, o que foi um dos
grandes motivos das primeiras recuperações judiciais envolvendo incorporadoras
(i.e. PDG e Viver).
Antes da criação da Lei
das Incorporações Imobiliárias, em 1964, a atividade de construção e
comercialização de unidades em edifícios ocorria sem a considerável delimitação
de responsabilidades, o que aumentava exponencialmente os riscos para os
adquirentes, visto que o “incorporador” se limitava apenas a viabilizar a
comercialização das unidades.
A Lei das Incorporações
Imobiliárias se preocupou em estabelecer um sistema de proteção ao adquirente
das unidades autônomas, delimitando responsabilidades específicas ao
incorporador e demais profissionais envolvidos no negócio.
Ocorre que, com o
passar do tempo, restou evidente a necessidade de certas adequações na Lei das
Incorporações Imobiliárias, principalmente relacionadas às questões
patrimoniais. Em vista disso, foi publicada a Lei 10.931/2004, que inseriu o
capítulo I-A à Lei das Incorporações Imobiliárias, disciplinando um novo regime
jurídico destinado às sociedades incorporadoras: o regime de afetação.
O regime de afetação é
uma opção fornecida aos incorporadores que consiste na segregação entre o
patrimônio do incorporador (aqui compreendidos todos os seus bens, direitos e
obrigações) e os bens e direitos que estão, obrigatoriamente, voltados à
realização das obras do empreendimento, que perfazem o chamado “patrimônio de
afetação”.
Além de segregado, o
patrimônio de afetação tem sua utilização regulada pela Lei das Incorporações
Imobiliárias, sendo expressamente proibida a sua utilização para aplicação
diversa à conclusão das obras. A legislação limita, inclusive, a possibilidade
de garantir qualquer obrigação estranha à incorporação.
A opção pelo regime de
afetação é vantajosa tanto para o adquirente quanto para o incorporador. Por um
lado, as sociedades contraem o ônus de não poder dispor livremente dos seus
recursos, o que concede maior segurança aos adquirentes das unidades
imobiliárias. Noutro giro, a opção por esse regime é recompensada pela União por
meio da oferta de um regime tributário especial (disciplinado pelo art. 1º e
seguintes da Lei 10.931/2004), com carga tributária reduzida. Além disso, por
oferecerem maior segurança aos adquirentes de que as obras serão devidamente
concluídas, usualmente atraem maior número de clientes e conseguem
financiamentos das obras sob condições melhores. Em relação ao adquirente, com
advento da Lei nº 13.786/2018 também existem regras especiais e mais rígidas em
termos de distrato.
É fundamental ressaltar
que a instituição do patrimônio de afetação não é, de forma alguma, uma
obrigação para o incorporador. A opção pelo regime de afetação dependerá da
condução dos negócios pelo incorporador e implica uma limitação expressiva do
direito de dispor livremente do patrimônio visando a proteção dos adquirentes e
a consequente realização do objeto social do incorporador.
Em razão disso, a
adoção (ou não) do regime de afetação é ponto chave da análise sobre a
possibilidade de ajuizamento da recuperação judicial pelas SPEs.
Firmadas essas
premissas, a discussão que se apresenta é se, em vista das peculiaridades
descritas acima, seria possível compatibilizar o regime jurídico das
incorporações imobiliárias com a recuperação judicial, tal como disciplinada
pela Lei nº 11.101/2005.
A recuperação judicial
do incorporador imobiliário e das SPEs
Como ponto de partida,
o Ministro Villas Bôas Cueva destaca que não há óbice legal à recuperação
judicial da incorporadora imobiliária pelo art. 2º da Lei nº 11.101/2005, que
determina quais são as entidades que não se sujeitam à disciplina do microssistema
de insolvência. Do mesmo modo, não há vedação a sociedades constituídas por
prazo determinado, como é o caso das SPEs, para se socorrerem da recuperação
judicial.
Por outro lado, na
visão da Terceira Turma do STJ, não se pode perder de vista que a legislação
recuperacional tem como princípio norteador a preservação da atividade
empresarial, de modo que aquelas sociedades cuja atividade já tenha se exaurido
não farão jus à proteção legal. Esse foi, inclusive, o caso das empresas do
Grupo Esser, que, segundo apurado, não tinham atividade suscetível de
recuperação, já que havia entre as empresas que pediam recuperação judicial em
conjunto algumas sociedades que tinham projetos e alvarás antigos, construções
interrompidas há anos, enquanto outras sequer apresentavam movimentações
contábeis.
Lembre-se, ainda, que a
jurisprudência já estabeleceu outras premissas que, embora não analisadas de
forma específica no julgado do STJ, parecem relevantes para que se possa aferir
a pertinência e o cabimento da recuperação judicial no caso concreto. A exemplo
disso, no caso Viver, de forma similar ao caso do Grupo Esser, o TJSP entendeu
que não podem requerer recuperação judicial as empresas que concluíram o
empreendimento e não possuem estoque, ou aqueles que possuem estoque, mas não
têm dívidas.
O patrimônio de
afetação na recuperação judicial
Embora a atividade de
incorporação imobiliária e o fato de se tratar de negócio estruturado em SPEs
não impeçam, por si só, o ajuizamento de pedido de recuperação judicial, o
julgado da Terceira Turma do STJ impõe limites com relação ao patrimônio de
afetação.
O que se entendeu no
caso analisado foi que a parcela do patrimônio afetado não se sujeita à
recuperação judicial e continuará exercendo suas atividades de forma
independente, seguindo as regras estabelecidas na Lei das Incorporações
Imobiliárias.
A constituição do
patrimônio de afetação traz uma série de benefícios ao incorporador, que deve,
portanto, arcar com as restrições que são inerentes a esse regime. Isto é, se
por um lado o incorporador se beneficia dessa circunstância para obter
financiamentos e atrair clientes; por outro, deve arcar com o ônus
correspondente a essa autonomia negocial e gerencial, não contaminando os
ativos destinados ao empreendimento com outros passivos.
Portanto, somente
depois de exaurido o patrimônio de afetação, pago o financiamento respectivo e
entregue o remanescente ao incorporador é que os ativos poderão ser destinados
ao pagamento de outros credores.
Consolidação
substancial
Por outro lado, de acordo
com o STJ, as SPEs que não administram patrimônio de afetação, a despeito de
serem legitimadas para buscar sua reorganização econômica por meio do
procedimento recuperacional, não poderiam, em regra, se valer da consolidação
substancial.
A consolidação
substancial é a hipótese de que as devedoras, integrantes do mesmo grupo
societário e que tenham requerido a recuperação judicial conjuntamente,
desconsiderem, para fins da recuperação judicial, suas personalidades
jurídicas, de modo que o grupo passe a ser visto como uma entidade econômica
única. Ou seja, ignorando que cada uma das sociedades foi responsável por
determinados passivos e é titular de determinados ativos.
Essa situação está, de
modo geral, relacionada a um tratamento disfuncional dado pelo grupo à
autonomia patrimonial de cada uma das sociedades dele integrantes. A lógica da
consolidação substancial é a de que, muitas vezes, as recuperandas coordenaram
suas atuações de tal modo que a reestruturação do grupo passa por um tratamento
unitário para todas as recuperandas.
A configuração dessa
hipótese pode decorrer da vontade das recuperandas, que submetem a consolidação
substancial à deliberação dos credores em assembleia geral, ou, conforme
sustenta parte da doutrina, por imposição legal, quando verificados os
requisitos do art. 69-J da LRF, a saber: (i) confusão de ativos e passivos de
modo a que a distinção entre as responsabilidades e bens de cada uma exija
excessivo dispêndio de recursos ou tempo; (ii) interconexão entre as empresas;
e (iii) ao menos duas das seguintes hipóteses: (a) existência de garantias
cruzadas; (b) relação de controle ou dependência; (c) identidade total ou
parcial do quadro societário; ou (d) atuação conjunta no mercado.
Como a consolidação
substancial pressupõe essa relativa desconsideração da autonomia patrimonial de
cada uma das sociedades do grupo devedor, e tendo em vista que o objetivo da
constituição de SPEs em incorporações imobiliárias é justamente a segregação
entre os ativos e passivos de cada empreendimento, o STJ estabeleceu como regra
geral a impossibilidade de se impor a consolidação substancial para tais
sociedades, na forma do art. 69-J da Lei nº 11.101/2005 – i.e. a priori haveria
uma aparente incompatibilidade entre os institutos em análise. Cabe, contudo, a
importante ressalva de que o julgado do STJ garante a decisão final aos
credores, que podem aceitar a consolidação caso entendam essa circunstância
como mais benéfica.
Em conclusão, embora o
tema ainda careça de maior aprofundamento na jurisprudência, o julgado do STJ
parece conciliar os interesses do incorporador e de seus credores, na medida em
que não obsta o acesso ao instituto da recuperação judicial à atividade
incorporadora (tanto que, mesmo à vista das limitações impostas, não são poucos
os processos de recuperação envolvendo grupos do setor), mas, ao mesmo tempo,
prestigia a especialidade do tratamento do patrimônio de afetação dada pela Lei
das Incorporações Imobiliárias.
Dessa forma, o
adquirente de unidade futura e o financiador do empreendimento respectivo que,
levando em consideração a adoção do regime de afetação, opte por aplicar seus
recursos na incorporação imobiliária terão maior segurança jurídica quanto ao
negócio realizado, tendo em vista que a decisão tomada pelo STJ não mitiga o
caráter de proteção de regime de afetação em face de eventual pedido de
recuperação judicial.
*Bruno Costa, Gabriela Caetano Andrade,
Guilherme Alcântara Nunes são, respectivamente, sócio e advogados da área
Imobiliária do Machado Meyer Advogados.
*Renata Oliveira, Carolina Mascarenhas, Caio Aranha Saffaro Vieira e Anna Carolina Simões Abrantes são, respectivamente, sócia e advogados da área de Reestruturação e Insolvência do Machado Meyer Advogados.
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