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Buraco no teto, saída mais cômoda para promessas de campanha

Samuel Hanan*

 

 

Não é raro na política a história se repetir. Aconteceu de novo e, desta vez, antes mesmo da diplomação e da posse dos vencedores nas urnas. Decorridos nem 10 dias após a apuração, o presidente eleito já iniciou negociações com alguns dos mais expressivos blocos parlamentares para aprovar, ainda no atual governo, o aumento de gastos discricionários e acima do teto, no total de R$ 200 bilhões, para cumprimento de promessas de campanha. Trata-se de um volume absurdo de recursos, correspondendo a mais de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) e a cerca de 10% das receitas tributárias da União previstas para 2023.

Se o movimento do eleito não surpreendeu, também não foi imprevisível a reação dos blocos dos parlamentares, muitos dos quais não se reelegeram para a próxima legislatura. O aceno foi positivo, desde que condicionado à manutenção do orçamento secreto no período 2023/2026. Isto é: a moeda de troca é a garantia da abastada fonte de recursos para emendas parlamentares e alvo de críticas justamente do presidente eleito durante a campanha eleitoral, na qual apontou o orçamento secreto como foco de corrupção no atual governo. As negociações ainda incluem as reeleições dos presidentes da Câmara e do Senado e o aumento do número de ministérios, o que representará mais cargos para atender aos parlamentares.

Está claro, portanto, que uma das grandes mazelas do país não será combatida, uma vez que essa proposta implicará no rompimento das regras do teto de gastos, limitação saudável aprovada pela Emenda Constitucional nº 95/2016. Por mais incrível que possa parecer, o teto de gastos foi transformado em vilão, tomando o lugar da corrupção, da gastança com servidores públicos e dos gastos discricionários tributários, esses sim protagonistas da tragédia administrativa nacional e das tragedias diárias na educação e segurança pública.

As consequências do que se propõe serão devastadoras. O aumento de gastos de R$ 200 bilhões, sem contrapartida de receita extra equivalente, implicará no aumento do endividamento de R$ 7,8 para R$ 8,0 trilhões e no crescimento do déficit público, que passará de 7% do PIB para 8 a 9% do PIB. Tudo isso em um momento em que a situação fiscal do governo brasileiro não é confortável e na qual os gastos com juros, em razão da inflação elevada – de 6,5% ao ano -, já se aproxima de R$ 800 bilhões/ano.

Para se ter uma ideia de quão expressivo é o valor pretendido pelo presidente eleito, basta dizer que os R$ 200 bilhões são suficientes para suportar as despesas do SUS por um ano e meio, ou para construir 1,4 milhão de unidades habitacionais, nos moldes do programa em vigor.

Será inevitável também o aumento do déficit público para o cumprimento de outra promessa de campanha, a isenção do Imposto de Renda das pessoas físicas com rendimento de até R$ 5 mil por mês. Os cálculos apontam para um buraco de mais de R$ 100 bilhões por ano no orçamento.

O aumento de gastos para cumprir promessas de campanha não chega a surpreender, posto não ser novidade. Surpresa seria se as entidades empresariais e a elite intelectual protestassem com indignação e se a grade mídia dedicasse espaço para a discussão séria de uma questão que, se concretizada, trará consequências estruturais danos à sociedade brasileira. Enquanto isso, os maiores problemas do Brasil permanecem sem análise profunda e sem ações concretas sobre suas principais causas: a educação de baixo nível, a gastança com o funcionalismo público graças a uma máquina inchada e ineficiente, gastos tributários  em forma de renúncias fiscais a níveis insuportáveis e sem justificativa porque grande parte contraria a Constituição Federal, e a corrupção, ainda tolerada uma vez que o foro privilegiado é estendido a cerca de 55 mil ocupantes de cargos públicos e não é mais possível a prisão após condenação por órgão colegiado de segunda instância.

Pensando somente em garantir uma forma de gastar mais, o próximo governo perde a oportunidade de discutir um novo pacto federativo, essencial não para questões pontuais, mas para permitir a ação harmoniosa entre os chefes dos Três Poderes, visando a atacar as origens dos principais entraves ao desenvolvimento socioeconômico. O Brasil precisa deixar de ser um país de soluções espasmódicas e de faz-de-conta. 

A mais importante mudança, é certo, deve começar pela educação. O Brasil jamais avançará para se tornar um país desenvolvido, mais justo, menos violento e menos desigual sem profundas modificações nas políticas públicas voltadas a esse segmento. O país precisa oferecer educação fundamental e ensino médio em regime de tempo integral (de caráter facultativo para os alunos da rede pública que precisam trabalhar para ajudar no sustento familiar), com reforço escolar virtual e presencial principalmente de Língua Portuguesa, Matemática, Informática e Língua Inglesa. É fundamental, ainda, fazer uma reformulação das grades curriculares, abarcando novos ramos do conhecimento, de forma a capacitar os alunos para as modernas necessidades do mercado e do planeta, cada vez mais tecnológico, informatizado, competitivo e globalizado. Obviamente, essa mudança estrutural exige melhor remuneração dos professores, atraindo os mestres mais qualificados, sem o que jamais teremos profissionais bem formados.

Voltando à questão econômica, é crucial que o novo governo trabalhe para implantar, por meio de lei que a torne obrigatória, a correção anual da tabela do Imposto de Renda. O Sindifisco aponta que a defasagem na tabela do IR já soma 147,37%; ou seja, a eliminação dessa diferença elevaria a isenção dos atuais R$ 1.903,98 para R$ 4.709,88 mensais. Trata-se de uma questão de justiça e não de bondade, com essa correção, quem ganha até R$ 5.000,00 por mês e hoje paga R$ 505,64 de IR, passaria a pagar apenas R$ 24,73, uma diferença mensal de R$ 480,91 em favor do contribuinte. A correção da tabela do IR, anualmente, é muito melhor, mais legitima, mais justa e impessoal que a promessa de campanha do presidente eleito de isenção até R$ 5.000,00 por mês. Eis aqui uma necessidade urgente porque, ao não aplicar a correção na tabela, o país aumenta a tributação sem lei autorizativa pois não se trata de aumento de renda, mas de mera correção com base na inflação.

Além disso, entre as necessidades mais urgentes está a ampla reforma fiscal, sem a qual a maior fábrica de pobreza do país continuará de portas abertas. É imprescindível reduzir drasticamente a tributação sobre consumo dos gêneros e serviços essenciais (alimentos, água, energia, gás de cozinha, medicamentos, artigos de higiene pessoal, vestuário básico, produtos de limpeza doméstica, e transporte público). O atual sistema, regressivo, é injusto e faz com que o trabalhador com renda até 1,5 salário mínimo por mês pague cerca de 29,40% de impostos sobre o valor dos itens de primeira necessidade.

Não menos importante é a drástica redução das renúncias fiscais com tributos federais, limitando-as ao permitido pelos artigos 43, 151 e 165 da Constituição Federal, visando a combater as desigualdades regionais e sem concessão discricionária de privilégio a determinados setores, como ocorre hoje.

Outra medida que realmente importa à população brasileira é um programa plurianual de habitação para pessoas de baixa renda, garantindo moradias com área útil de 40m² a 50m², pelo menos, e dotadas de captação de energia fotovoltaica. É possível reduzir a zero o déficit habitacional do país com a construção de pelo menos 600 mil unidades por ano, ao custo anual de R$ 90 bilhões, valor que pode ser reduzido à metade se as unidades forem subsidiadas em 50%.

Há fontes de recursos disponíveis para todas essas medidas estratégicas, bastando apenas vontade política para tanto. Um exemplo é a redução dos gastos tributários em forma de renúncias fiscais, dos atuais 4,5% para 2,0% do PIB, o que significaria economia anual de R$ 237 bilhões. Outros R$ 285 bilhões por ano podem ser economizados se, em até cinco anos, houver a redução dos gastos com funcionalismo público, que hoje consomem mais de 13% do PIB, ao mesmo nível (10% do PIB) do que gastam com essa rubrica, em média, os 37 países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). E, se a corrupção sistêmica que hoje custa ao Brasil de 1,30% a 2,30% do PIB for efetivamente combatida e reduzida a 0,75% do PIB, o país terá de R$ 52 milhões a R$ 147 milhões a mais para investimento em áreas prioritárias.

A preocupação do novo governo, portanto, precisa ser mais assertiva com a busca por soluções para os entraves solidificados do desenvolvimento do que meramente com o cumprimento de promessas imediatas de campanha. O país não suporta mais remendos administrativos e nem a falta de um plano de metas e de planejamento transparente a longo prazo, como fez o ex-presidente Juscelino Kubitscheck com suas 30+1 metas. É preciso ouvir o grito das urnas, que ainda ecoa clamando por um Brasil mais igual.

 

**Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site:

https://samuelhanan.com.br

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