Desafios decorrentes da indefinição conceitual dos Criptoativos
Artigo de Fabio Pereira da Silva, professor da
FIPECAFI e colunista do Denarius (Boletim Econômico Financeiro da FipeCafi
Projetos), e de Thiago Barbosa Wanderley, advogado em São Paulo.
Nos últimos dois anos, a popularidade
dos criptoativos aumentou de forma exponencial no mercado brasileiro. Segundo o
relatório público da Receita Federal do Brasil, os valores das operações
declaradas por pessoas físicas e jurídicas em 2021 totalizaram 200 bilhões de
reais, número que pode aumentar ainda mais se considerarmos que muitas pessoas
nunca declararam seus investimentos.
As grandes cidades já incluíram os
criptoativos em sua economia como forma de pagamento, sendo possível adquirir
um imóvel ou mesmo comprar uma tradicional pizza paulistana utilizando a
inovadora criação de Satoshi Nakamoto (Bitcoin) como forma de pagamento. No Rio
de Janeiro, a partir de 2023, será possível até mesmo quitar o IPTU por meio
deste ativo.
O Bitcoin foi idealizado para servir
como uma simples moeda de troca, trazendo como principais vantagens a
transparência das transações (que podem ser verificadas por qualquer usuário),
segurança (operações criptografadas) e independência dos Estados (dado que a
própria rede realiza a emissão, e não um banco central). Esta última
característica pode até se confirmar sob a perspectiva da política monetária,
mas certamente não será aplicada às áreas do direito e da contabilidade. Isso
porque, à medida que o Bitcoin é transacionado, nasce a necessidade de
registrar contabilmente este ativo, bem como determinar a tributação incidente.
Os desafios impostos aos advogados e
contadores tem seu ponto inaugural numa questão aparentemente básica e que
ainda não foi resolvida: Afinal, o que é um criptoativo? Tanto os legisladores
como os Comitês Contábeis ainda travam debates em busca de uma definição
precisa. Enquanto não se chega a um consenso, referida medida de riqueza não
poderá ficar fora das Demonstrações Financeiras, bem como o Fisco não deixará
tais transações passarem ilesas da incidência tributária.
Sob a perspectiva jurídica, apesar de
não haver uma lei conferindo enquadramento específico, existem diplomas
infralegais que estabelecem diretrizes elementares. O primeiro deles foi o
“Perguntas e Respostas do IRPF”, do exercício 2016, no qual a Receita Federal
do Brasil (RFB) asseverou que “As
moedas virtuais (bitcoins, por exemplo), muito embora não sejam consideradas
como moeda nos termos do marco regulatório atual, devem ser declaradas na Ficha
Bens e Direitos como ‘outros bens’, uma vez que podem ser equiparadas a um
ativo financeiro”. Em uma segunda resposta, a receita determinou
ainda que os ganhos auferidos nas alienações de criptoativos estariam sujeitos
à tributação sob a sistemática do ganho de capital.
A primeira parte do texto manteve-se
inalterada por diversos anos, com muitos autores tomando por certo que a RFB
conferiu natureza jurídica de ativo financeiro aos criptoativos. No entanto,
destacamos que a autoridade fiscal não afirmou que o criptoativo “é” equiparado
a um ativo financeiro, mencionando apenas que eles “podem ser”, o que, em nosso
entendimento, tem uma grande diferença.
Um criptoativo com determinada
característica pode, por exemplo, ser classificado como ativo financeiro, e
outro com outras características, não. Corroborando nosso entendimento, o
Perguntas e Respostas do exercício 2022 firmou que os criptoativos “podem ser equiparados a ativos sujeitos
a ganho de capital”, suprimindo exatamente o vocábulo “financeiro”,
enfraquecendo o entendimento de que já haveria uma natureza jurídica definida
por parte da RFB.
Ao traçar as obrigações acessórias por
meio da IN 1.888/19, a RFB trouxe em seu art. 5º, inciso I, um conceito de
criptoativo que não faz referência expressa ao seu enquadramento como ativo
financeiro, destacando novamente que não constitui moeda de curso legal.
Ante essa indefinição jurídica, ao
realizar o “pagamento” de uma pizza utilizando Bitcoin, como deveria ser
registrado o criptoativo recebido pela pessoa jurídica em sua contabilidade?
Registra-se o ingresso de um Ativo Financeiro (nos moldes do CPC 48), um
ingresso Equivalente a Caixa (CPC 03) ou ainda um bem imaterial? Quando
verificada a inexistência de contraparte obrigada ao pagamento, bem como alta
volatilidade, restaria afastado o enquadramento como Ativo Financeiro e
Equivalente a Caixa, restando a classificação como ativo intangível com uma
espécie de “regra geral”.
Sob a perspectiva da tributação, as
dúvidas afetam tanto a pessoa que realizou o pagamento da pizza em bitcoin como
para aquele que recebeu a criptomoeda. Segundo podemos extrair do entendimento
da RFB, o comprador do bem (pizza), ao utilizar o bitcoin para quitação da
operação, realiza a renda relacionada ao ganho de capital, assim considerada a
diferença entre o valor da aquisição e o valor da criptomoeda na data da
liquidação da operação. Dessa forma, fica sujeito ao pagamento do imposto de
renda sobre o ganho de capital.
Por sua vez, sob a perspectiva do
vendedor da pizza, a apuração tributária segue seu curso regular, ou seja, há
apuração de PIS, Cofins, IRPJ e CSLL relativa à sua operação comercial, sendo
possível ainda que apure ganho de capital futuramente quando liquidar a
criptomoeda recebida em pagamento.
Como se nota, as questões envolvendo o
enquadramento jurídico-contábil dos criptoativos estão longe de serem
cristalinas e ainda há dúvidas que permeiam as diversas operações possíveis e
que envolvem esses tipos de ativos. Em nosso entendimento, o cenário ideal nos
levaria a traçar critérios para que a natureza de cada criptoativo fosse identificada
conforme cada caso concreto, fazendo um paralelo com as situações já existentes
e aplicáveis aos ativos tradicionais.
Como exemplo, ao analisar uma stablecoin, pelo fato de seu
valor encontrar-se lastreada numa moeda fiduciária, deveria ser conferida a
natureza de ativo financeiro. No entanto, como todo cenário ideal, o caminho
para elaboração destes critérios de identificação é bastante tortuoso, tendo em
vista que em muitos dos casos o lastro anunciado pela emissora do token não
corresponde à realidade.
Diante dessas dificuldades para se apresentar critérios seguros e aplicáveis, possivelmente veremos em breve a criação de ficções jurídicas que atribuam uma natureza específica para cada tipo de token. Como é recorrente no direito, referida medida de um lado trará mais segurança jurídica, e, do outro, acarretará novos debates acerca da ilegalidade ou ilegitimidade da medida.
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