As lições da modulação de efeitos na declaração de inconstitucionalidade
*Por: Andre Henrique Azeredo Santos
A Constituição Federal é a norma
jurídica fundamental do ordenamento jurídico brasileiro. É ela, portanto, quem
dá fundamento de validade aos demais atos normativos, sendo esse o racional que
deu origem à ideia de que a norma violadora da Constituição, formal ou
materialmente, deve ser declarada nula desde a origem, como se nunca tivesse
existido (eficácia retroativa natural da declaração de inconstitucionalidade).
Sem dúvida, o sistema jurídico não pode conviver com qualquer lei que ofenda a
sua norma fundamental superior (a Constituição).
A aplicação de efeitos retroativos em
todo e qualquer caso de declaração de inconstitucionalidade, porém, poderia
levar à instabilidade jurídica. Sendo assim, em nome da
previsibilidade/confiabilidade dos atos estatais em geral, criou-se a modulação
de efeitos da declaração de inconstitucionalidade. A ideia é que não sejam
aplicados os naturais efeitos retroativos da declaração de
inconstitucionalidade se houver razões de segurança jurídica ou de interesse
social que justifiquem tal postura (art. 27 da Lei nº 9.868/1999 c.c. art. 927,
§3º, do CPC).
Logo, tal medida só pode ser
absolutamente excepcional, pois significa afastar os naturais efeitos
decorrentes da nulidade absoluta da norma inconstitucional. Apesar de a
Constituição definir expressamente quais fatos podem ser tributados, é comum
que tais normas constitucionais sejam desrespeitadas. Por exemplo, segundo a
jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal (STF), o legislador
desrespeitou a Constituição quando autorizou a cobrança: a) do diferencial de
alíquotas do ICMS sem que, antes, o tema fosse regulamentado em lei
complementar nacional (tema 1093 de repercussão geral); e b) de ICMS em patamar
mais gravoso para serviços de telecomunicação e de energia elétrica,
contrariando o princípio constitucional da seletividade (tema 745 de
repercussão geral). Ambos os casos foram julgados ao longo do ano de 2021.
E a questão que se pode levantar é a
seguinte: O que os casos mencionados têm em comum? Nestes casos, o STF deixou
de aplicar os naturais efeitos retroativos da declaração de
inconstitucionalidade, com a ressalva, apenas, das “ações judiciais em curso”,
pensando em proteger os cofres públicos diante da atual crise econômica
decorrente da pandemia do coronavírus. Além disso, o STF deu ao legislador
ordinário um prazo extra para se adaptar à sua decisão: a) no caso do
diferencial de alíquotas do ICMS, a inconstitucionalidade só valeria a partir
de 2022; e b) no caso da seletividade do ICMS, a decisão só valerá em 2024.
Em um contexto no qual os julgamentos
demoram anos (em alguns casos, até décadas) para se encerrar, com a modulação
dos efeitos, o Fisco ganha uma proteção extra (além da prescrição), muito
embora tenha cobrado tributo indevido por anos (até décadas).
Assim, podemos extrair algumas lições
dessa situação. Em primeiro lugar o caráter educativo (no mal sentido) que ela
traz, já que gestores públicos podem criar tributos inconstitucionais e
cobrá-los por anos a fio sabendo que, se um dia tal cobrança for declarada
inconstitucional, os cofres públicos terão uma proteção adicional (além da
prescrição), qual seja, a modulação de efeitos. Além disso, para os
contribuintes, fica o “dever” de entrar com qualquer medida judicial sobre
inconstitucionalidade tributária, a fim de se proteger de eventual modulação.
Em um quadro de crise econômica e de
pandemia mundial, é compreensível que o STF queira proteger o Erário. Acontece,
todavia, que essa proteção que pensa apenas no interesse financeiro do Estado,
a curto e médio prazo, pode gerar efeitos danosos a longo prazo. A pedagogia da
modulação acaba ensinando aos gestores públicos que, na prática, compensa
cobrar tributo indevido, sobretudo porque: a) muitos contribuintes sequer
buscar a recuperação do indébito, pelos baixos valores envolvidos; e b) há
certa resistência do STF em aplicar a modulação para proteger os
contribuintes.
É o caso, por exemplo, da discussão
sobre a não incidência de contribuições previdenciárias sobre o terço de férias
(tema 985 de repercussão geral): contrariando histórica jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), firmada com efeito vinculante em 2014, o
STF declarou a validade da cobrança sem proteger os contribuintes que, durante
anos, confiaram na decisão do STJ sobre o tema, pela invalidade da cobrança, em
uma situação que, inclusive, é causa legal expressa para que haja a modulação
de efeitos (art. 927, §3º, do CPC). Há pedido de modulação nesse caso, mas se
nota certa resistência em deferi-lo. Para o Fisco, então, fica o ensinamento de
que a “inconstitucionalidade compensa”.
Do lado dos contribuintes, a postura
atual do STF é um incentivo à litigiosidade, na contramão do espírito do
CPC/2015 e da nova relação entre Fisco e Contribuinte, pautada em instrumentos
extrajudiciais de resolução de conflitos (negócio jurídico processual,
transação tributária, etc). A modulação, da forma como realizada, gera uma
corrida ao Judiciário, tornando-o mais lento como um todo.
Em resumo, a lição principal que fica da
aplicação desmedida do instituto da modulação de efeitos em matéria tributária
é a seguinte: irresponsabilidade jurídica do Estado na criação de tributos e
aumento da litigiosidade. Nesse cenário, é tempo de tratar a modulação de
efeitos como ela foi pensada originalmente. Ou seja, como uma medida de
cabimento absolutamente restritivo e excepcional.
*Andre Henrique Azeredo Santos é sócio do FAS Advogados
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